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Serguilha, Luis. Falar é morder uma epidemia

miércoles, 03 de junio de 2020
Serguilha, Luis. Falar  morder uma epidemia SERGUILHA, Luís – falar é morder uma epidemia. Edição BUSÍLIS. Tropelias & Companhia –Associação Cultural, 1ª Edição - Maio de 2019, Portugal.

Luís Serguilha como escritor, ensaísta e poeta, é perentório na sua postura de insubmissão, comocriador de conjunturas. Desloca-se pela literatura como manobrador de potências em mudança,onde a desinquietação é uma constante, destacando-se uma pronúncia de certo modo inacessível.

Como poeta, distancia-se da pessoalidade incorporando o mundo, percecionando díspares acústicas e visões em alvoroço sempre fora de si mesmo.

Serguilha rompe convicções enaltecendo a inconsciência, pois no seu oposto, encontramos asujeição aos costumes e normas castradoras da sociedade. Na inconsciência descobre a inovação,numa menção clara ao espírito dionisíaco. A sua escrita abrange faixas escondidas da linguagem com símbolos mutantes e sem bússola. Como poeta não se submete à falsa moral, não sustentacoações nem fronteiras, confisca o inacessível experimentando de forma destemida odesconhecido.

A sua escrita acontece de uma forma exilada, irrequieta e aparentemente desalinhada, envolta emdepredação onde desenraíza o material. Nesta obra peculiar, “falar é morder uma epidemia”,recolhe na sua prática filosófica as conceções de outros pensadores como Edgar Morin,Heraclito, Kant, Nietzsche, Anaximandro, Goethe e Kierkegaard, para desenvolver outrascambiantes adaptadas ao seu sentir na sua desconstrução do universo.

Como criador singular, asua poesia resvala por momentos de transe em dissertação livre, que apela para acústicasincompletas pois que ligadas à ressonância do espanto, despedaçando o universo apinhado de auscultações em êxtase. Realça o pavor das forças expressionistas sempre em mudança, onde secaptam incontornáveis atrocidades. O poeta liberta-se como quebrador de consciências, entrando em rutura com o imposto numa acesa perspetiva agramatical que se acende na impessoalidade, deslocando-se num abismo de saberes movíveis, em transe incontrolável, transitando entre topografias de explorações eestranhezas, que se esgrimem através da escrita. A sua inspiração criativa é embebida por tramas fractais, onde assomam enredos e viagens interpretativas entre corpo e espírito, tornando visível o invisível. Religa-se ao caos escalando a montanha inacessível da realidade, entre mundos prováveis onde se traçam janelas infindas e geografias brutais de contágios.

A palavra é repletade mudança perante o inapreensível, captando pela sua força feminina, o núcleo do mundo através de incógnitas irresolúveis. Na obra “falar é morder uma epidemia”, Serguilha manuseia com premência, o triângulo conceptual, homem, corpo e fala, numa antropologia em transmutação. O desejo e a rebelião,regeneram o caos através do grito em forma de poesia onde naufraga o real. O homem reage ao óbito perante múltiplas vontades. A fala aparece como um aclamar da exalação forasteira, em descobertas problemáticas, perante um mundo hermético de matérias incorpóreas,multiplicadoras de fissuras e propenso à germinação poética. A epidemia insere-se no perigo dos tempos enraivecidos. Neste contexto, a fala que tenta compulsivamente o suicídio, alimentase de contágios e de flagelos, disseminados por todo o lado. Deste modo tal como Serguilha, o leitor alcança campos incertos de sofisticação existencial, apercebe-se de um mundo sem verdade onde proliferam as arquiteturas do inverso em manobras espaciais e temporais. Defronta o holomovimento através da descoberta ininterrupta do mundo, enfrentando suicídios e reinícios paradoxais, remetendo para a tragédia de Sísifo.

O leitor nega conjunções hirtas, viajando por cartografias sem limites. No “aqui-agora” há um êxtase dealucinação e vontade, do qual depende a vida, deparando-se com polissemias e transferências infinitas que se produzem no tempo em transfiguração. O poema, fruto de violências criativas, absorve um mundo de desejo em que desobedece, ensaiae conecta-se ao desassossego do ser humano, que em vigília criadora capta um devir sem origem nem destino. O animal-poema agarra o absurdo da vida em geografias de hostilidade.

O poema nesta obra, “falar é morder uma epidemia” acontece como um bailado em corrupios arrebatados,defrontando deste modo a morte e respirando entre coexistências cósmicas. A força poética de Serguilha desfaz as perspetivas, esculpindo espaços e tempos, transformando-se no grito da vida soltando-se, decifrando, desfazendo rotas e criando trilhas inumanas agramaticais. O poema quebra sentidos e mistura conceitos aqui e agora. E assim se constrói carregado de vazios infinitos, lutando contra a pulsão da morte, assimilando uma voz de vigores, musicalidades e chãos incomensuráveis.

A conceção de língua aparece em Serguilha enquadrada na premissa, “falar é morder uma epidemia”, modificando-se em viagem constante por frenesis infetados. Nesta situação, aspalavras são energias em mutação. Elas aparecem pela necessidade do grito em aflição, onde germinam as dinâmicas de alteração, de algoritmos. O verbo é usurpador ligando-se às substâncias inacessíveis. A fala torna-se uma combustão silábica que reemerge nas topologias incógnitas, em ensaio ininterrupto por entre os ruídos de todas as disciplinas do conhecimento. O próprio grito abre acesso para o leitor do caos. A palavra em inquietação suga então, as contaminações em estado de heteronomia. Os espaços que perfazem o mundo, são ligações sem autodomínio, que se inserem no panteísmo. Deus é o mundo e está em todo o lado, mesmo no vínculo da invisibilidade da substância. No mundo, nada é categórico nas propagações dos seres. Há uma memoração cósmica que difunde a metamorfose entre perplexidades, onde tudo reemerge como um caleidoscópio.

A própria natureza caótica com venenosas geografias tem uma língua infinita. Sem ela, o mundo colapsa. O que vive numa duração de possibilidades são bramidos e vigias em numerosos devires de vontades múltiplas, onde tudo é ativo, tudo se contamina em interdependência. O panteísmo surge no contexto das forças em desordenação, de zonas movíveis onde tudo se toca, mas onde aface inconstante do avesso do mundo é inacessível. A heteronomia exige passagens múltiplas e veementes onde polissemias se erguem. Desta forma, o panteísmo manifesta-se em planos desviantes e direções variadas, numa voz em constante exaltação. Reincide o “ápeiron” de Anaximandro, destacado pelos criadores cósmicos do caos indefinito e infinito.

O corpo modificado pela paixão e onde baloiçam patologias, é visto como apologia à vida e à liberdade, numa amálgama periclitante de falas e de trajetórias cruéis.

Corpo e linguagem submergem em consciência onde se propaga o grito da morte, pois que o real se entranha no animal, que como cadáver vivo enfrenta o dilaceramento. O homem estando amarrado e de rosto desfeito, joga dados absurdos contra as energias do mundo e a crueldade da vida, perspetivando a morte como impregnação do inabordável. Tudo lhe foge numa veemência em que a dubiedade da existência lhe é estranha e funesta.

Serguilha aflora de forma subtil parte do pensamento de Kierkegaard sendo marcado pelo subjetivismo da experimentação pessoal. Não existe uma verdade objetiva no meio do caótico.Trata-se de encontrar uma realidade que seja verdade para o próprio, admitindo uma dificuldade de reconhecer as ações do ponto de vista moral.

Neste deserto contaminado de silêncio e indiferença de Deus, estoura o grito humano que reincide sobre sensibilidades como o pavor e constrição, navegando num mar de incertezas. Serguilha aproxima-se de algumas ideias de Edgar Morin ao realçar as incapacidades do conhecimento. A uniformidade é descoberta na diversidade dos saberes quando elabora uma postura literária, que enfrenta as indeterminações afloradas nas ciências. Pulula uma estratégiados acasos. Torna-se exequível investigar a noção de um cosmo, que integra a sua disposição na impermanência, na deslocação, na incerteza e na dispersão energética. Surge nesta conjuntura uma complementaridade entre prodígios desalinhados e fenómenos estruturadores. Há como que um vórtice, uma transmutação e fragmentação organizadora, num mundo contingente.

É decompondo-se que o cosmo se cria, numa recreação de interações que provocam a colisão entre elementos. O caos apresenta-se como fenómeno de duas faces pelo qual o universo se desintegra e organiza, perante ligações baseadas em contextos heterogéneos. Coexistem a perturbação e correntezas, onde se espraiam necessárias agremiações e acoplagens, através da confusão e desassossego. Explora-se a problemática do avesso e do direito. Há um mundo de devastações ederrocadas, encarquilhamentos, explosões e cruzamentos de sistemas regeneradores estrangeiros.Tudo carece da desordem para organizar-se, desde o átomo até ao homem. Surge assim um tempo emaranhado, pois o vigilante subsiste no mesmo instante que o mundo. O homem pode ser uma consequência do devir, mas o próprio cosmo é um subproduto do devir antropológico. A complexidade surge ao mesmo tempo como condicionalidade, multiplicidade e conflito, desenvolvendo-se uma reestruturação permanente, numa relação entre seres múltiplos que se expressa através de uma autonomia que se mantém sistematicamente sujeita a outros seres e energias.

(Ana Maria Rodrigues Oliveira é licenciada em Filosofia, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)
Rodrigues Oliveira, Ana Maria
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