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A Xanela
Outono 2000
Mayombe, renunciando a Manuela, com o fim de
arranjar no Universo maniqueísta o lugar para o
talvez.Fugi dela, não a revi, escolhi sozinho, fecha-
do em casa, na nossa casa, naquela casa onde em
breve uma criança iria viver e chorar e sorrir. Nunca
vi essa criança, não a verei jamais. Nem Manuela.
A minha história é a dum alienado que se aliena,
esperando libertar-se.
Criança ainda, queria ser branco, para que
os brancos me não chamassem negro. Homem,
queria ser negro, para que os negros me não
odiassem. Onde estou eu, então? E Manuela,
como poderia ela situar-se na vida de alguém
perseguido pelo problema da escolha, do sim ou do
não? Fugi dela, sim, fugi dela, porque ela estava a
mais na minha vida; a minha vida é o esforço de
mostrar a uns e a outros que há sempre lugar para
o talvez.
Manuela, Manuela, amigada com outro, dan-
do as suas carícias a outro. E eu, aqui, molhado
pela chuva-mulher que não pára, exilado, deses-
perado, sem Manuela.
Sem Medo foi lavar-se perto do Comissário.
Admirou o torso esguio mas musculado do outro.
Estás em forma. Eu começo a ficar com
barriga.É a vida do exterior disse o Comissário.
Há quase seis meses que não fazes uma acção...
O que me chateia é avançar sem saber ao certo o
que se vai fazer. O plano não me agrada.
O Comandante sentou-se numa pedra.
Esperemos que o Das Operações tenha
razão. Ele é que fez o reconhecimento...
Reconhecimento! disse o Comissário.
Desceu o rio, encontrou a picada de ex-
ploração de madeira. Chamas a isso um reconhe-
cimento? Nem sequer sabe se os tugas têm tropa
na exploração.
Vamos saber agora. O que é preciso é
começar. Metemos a Base no interior, já foi um
passo em frente. Acabada a guerra de fronteira!
Agora vamos estudando as coisas no terreno e
decidindo aos poucos. De qualquer modo, esta
operação está dentro das tuas teorias: acção polí-
tica mais que militar. Não sei de que te queixas...
Não é isso, Comandante. Se impedirmos
essa exploração de continuar a roubar a nossa
madeira, é um golpe económico dado ao inimigo,
está porreiro. Além disso, vamos atacar num sítio
novo, o que é bom em relação ao povo, que nem
sequer pensa em nós... pelo menos, aparentemen-
te. Mas é o lado militar que me preocupa. Não
sabemos onde está o inimigo e qual o seu efectivo.
Somos tão poucos que não podemos permitir-nos
o luxo de sermos surpreendidos. Nenhuma outra
vitória justifica essa derrota.
O Comandante ensaboou a cara e mergul-
hou-a na água fresca do rio. Depois ficou a obser-
var os primeiros peixes que apareciam.
Como sempre, tens razão. Pois é esse
lado ignorado da operação que me agrada. Não
gosto das coisas demasiado planificadas, porque
há sempre um detalhe que falha. Reconheço ser
um erro, que queres? É a minha natureza anarquis-
ta, como dirias. Como conhecer o inimigo? Só
fazendo-o sair dos quartéis, pois que informações
não temos. Esta inércia, esta apatia, têm de aca-
bar. É preciso dinamizar as coisas. Já estivemos
parados demasiado tempo, à espera de instruções.
É a nós de tomarmos a decisão. Só a acção pode
pôr a nu as faltas ou os vícios da organização.
Porque é que nas outras Regiões a guerra progride
e aqui não cessa de recuar? Porque não temos
estado à altura, nós, o Movimento. Culpa-se o
povo, que é traidor. Desculpa fácil! É o povo daqui
que é traidor ou somos nós incapazes? Ou as duas
coisas? Para o saber, temos de agir, fazer mexer
as coisas, partir as estruturas caducas que impe-
dem o desenvolvimento da luta.
(de Mayombe)